24 de dezembro de 2011

A luz da esperança

Este ano resolvi inovar no meu presente de Natal a você que tem estado comigo todo este tempo lendo e comentando o que tenho escrito.

Por isso, o que você está prestes a ler é um texto de Jornalismo Literário (que mistura dados reais com a beleza da Literatura) escrito para a disciplina "Texto Jornalístico" da Pós. Foi minha primeira experiência. Sinceramente fiquei com medo de entregar. Dei para duas pessoas lerem (além do pessoal de casa) e saber a opinião.

Com o que ouvi das pessoas, tomei coragem e enviei para avaliação. O resultado foi bom: a professora respondeu positivamente. Então resolvi compartilhar com você. Espero que goste.

Da escuridão para a luz

O reinado de Salvador, no distante nordeste, esteve em festa. Não uma festa pequena ou uma tradição de tantas religiões e crenças reunidas. O que estas linhas vão mostrar é uma festa de almas. Reafirmo: não é nada religioso. Mas quem disse que a alma precisa ocupar apenas o seu lugar no Além?

As almas aqui também não estão ligadas à riqueza, luxo e ostentação. A festa não esteve nas capas das chamadas “Revistas de Salão”, aquelas que só existem nestes espaços para desfazer o tédio das mulheres em processo de embelezamento. Tal evento tão pouco apareceu nas ondas do rádio ou da internet e muito menos na tela adorada por todas as famílias nas noites.

Então, como as palavras aqui em cima e as que ainda estão por vir conhecem tal história? Claro que elas não apareceram neste papel por milagre ou por vontade própria. Dizem por aí que as palavras são “coisinhas” teimosas que resistem muito a saírem de seu conforto, mas quando saem compõe belos alimentos para os olhos e a alma.

Pois sim: por falar em alma, vamos voltar a elas. E a partir delas, você verá que a festa no reinado de Salvador foi encantadora.

Quando morremos temos dois caminhos: o Céu ou o Inferno. Este último é o pavor: morada de gente ruim (e bota gente nisso!) e calor infernal (desculpe-me a redundância). Mas estes opostos da pós-morte não existem só onde eles existem. Cá na Terra, como dizia meu avô, “nesse mundão ‘véio’ sem porteira”, basta olhar para os lados que é fácil ver o Céu e o Inferno.

No reinado de Salvador, o Céu todo mundo conhece: embalado por morenas bonitas, requebrado ritmado, bebida gelada, pôr-do-sol como cenário e os pés na areia da praia. O Inferno escondia-se atrás de tudo isso. Quem passava despercebido realmente não via. E quem via, queria sair de perto. O endereço do Inferno era em um lugar apertado na ladeira do Pelourinho, mais precisamente em um casarão colonial, com azulejos raros, tinta desbotada, muitas janelas e quatro andares. Era o “Cabe mais Um”.

Esse nome era bem sugestivo. Havia ali mais de 600 pessoas. Seiscentas almas dependuradas em um lugar escuro, fétido, sem higiene. Mas sempre recebia mais alguém. Onde cabia? Boa pergunta. Até os ratos que por lá passavam se assustavam pela falta de moral de quem ali “vivia”, pelos palavrões que surgiam nos corredores e nos 116 apertados “lares”.

Mas quem eram? Quais tipos de almas moravam ali? Na verdade, dizia o pessoal do Céu de Salvador, ninguém teria coragem de morar lá. Quem estava lá era porque simplesmente estava. Operários, soldados, árabes, mascates, ladrões, prostitutas, costureiras, carregadores, diziam que não era preciso ter coragem e sim vontade de continuar lutando pelo pão, vivendo e sonhando.

A multiplicidade de etnias, cores, origens e línguas era tanta que quem passava por lá quase saía poliglota!

A redondeza não era um dos locais mais interessantes também. Além da venda do Fernandes na frente do “Cabe mais Um”, havia atrás uma padaria árabe “alternativa”, como era chamada pelo Seu Mohamed, dono do local.

Foi nesse ambiente tão pouco chamativo que a festa de almas aconteceu.

Espantados. Foi assim que os moradores da parte do Céu de Salvador receberam a notícia de que mãe e filha, moradoras do “Cabe mais Um”, saíram de uma loja de brinquedos, cujos preços eram mais do que celestiais, esquecidas de pagar pelo produto: uma simples boneca de pano. O ocorrido foi tão profanador da tranquilidade alheia que todos os meios de informação, inclusive as “Revistas de Salão”, estiveram presentes para reportar tal acontecimento.

A mãe foi levada para o bairro que fica entre o Céu e o Inferno, o Purgatório, até que os homens engravatados, com estranhas perucas brancas, um falatório rebuscado e um martelo decidissem se ela poderia voltar ao convívio da família.

A filha, uma menina mulata, muito magra, de olhos esbugalhados, cabelos crespos e roupas furadas pela traça, voltou ao “Cabe mais Um”. Ao voltar, a menina, que tinha seus dez anos, passou pelos corredores ouvindo muitos comentários sobre o ato insano da mãe: “Como ela foi boba! Deveria, pelo menos, ter levado uma bolsa para esconder o que queria levar!”, dizia um. “Ela perdeu uma oportunidade. Pegava, enganava a filha e depois revendia para colocar comida em casa”, retrucava o outro. “Ela devia ter me chamado. Ensinava a ela uns truques”, comentava um sabichão.

A “casa” em que ela e sua família viviam era a última do quarto andar. As más línguas diziam que era “o pior lugar do Inferno”: mofo, paredes rachadas, iluminação precária, torneiras vazando, móveis que mal conseguiam sustentar o próprio peso.

A mãe voltou depois de seis meses. Logo que abriu a porta da “casa”, a filha correu para seus braços perguntando o que havia acontecido. A mãe, sem jeito, disse à menina que havia passado algum tempo em um lugar mágico em que o sol nascia quadrado, a comida aparecia por debaixo da porta e onde as mulheres viviam felizes, porque gritavam o tempo todo.

Como a vida não podia parar, o caso foi esquecido. Muitos outros, menos ou mais graves, aconteceram depois desse. Além de todos os adjetivos negativos que o “Cabe mais Um” tinha por natureza, o Céu de Salvador sempre acrescentava mais um, deixando o lugar mais escuro, triste, sem vida.

Tudo corria normal, dentro do que se podia dizer normalidade na truculenta vida das almas do cortiço. Porém, certa época, mãe e filha do “pior lugar do Inferno” voltaram a ser destaque. Não por terem se esquecido de pagar por alguma coisa, mas, pelo contrário, parecia que estavam começando a perder algo.

A menina voltou à sua rotina: já que não tinha conseguido uma vaga na escola pelo terceiro ano consecutivo, o pátio do “Cabe mais Um” era seu lugar de todos os dias. Um lugar sujo, com água parada, lixo jogado. Era ali que a menina brincava com seus colegas, enquanto a mãe e o irmão mais velho andavam pelo Céu de Salvador atrás do lixo e o pai afundava-se na “água que passarinho não bebe” na venda do Fernandes. E ela começou a ficar doente.

Como não tinha condição de levá-la a lugar nenhum, a mãe resolveu buscar entre os seus vizinhos alternativas (deste e de outro mundo) para curar a enfermidade da menina. Rezas, feitiços, banhos, poções, oferendas, promessas... tudo foi recomendado.

A situação comoveu a todos. Depois dos comentários negativos para mãe logo que esta foi levada ao “lugar mágico”, agora a conversa nos corredores era outra: a vida se extinguindo como areia em uma ampulheta.

A menina era muito querida. Por onde passava enchia o lugar de alegria, como se baldes de tinta colorida fossem jogados. Mesmo com seu corpo franzino, a energia era contagiante. Os corações feitos rocha rachavam-se quando a menina passava. Tão bem ela fazia com sua presença que foi apelidada de Luz. O assunto geral, portanto, era o de não deixar que a Luz se apagasse.

Então um plano foi montado: apesar de cada “casa” viver com pouco, muito pouco, cada andar se reuniu e começou a levar o pouco que conseguiu de alimento. Muitos pegavam embalagens e criavam brinquedos. Outros tantos contavam histórias. Rodas de música eram criadas. Mas nada resolvia.

O Verão no reinado de Salvador era quente, mas com um clima meio louco: calor demais durante o dia, chuva repentina de noite. Era a época menos querida pelos moradores do “Cabe mais Um”, porque as horas de descanso eram trocadas pela correria de baldes no escuro (causada pela constante queda de energia nesses tempos) para acabar com as goteiras existentes.

Numa dessas noites, o vento anunciava mais uma maratona. Anunciava o Dilúvio. Mesmo fraca, a menina levantou-se e foi ao encontro da janela que trepidava. Teve dificuldade de chegar até ela. O vento parecia que ia derrubá-la. Mas chegou e abriu-a. A ventania passou pela menina como se essa não existisse. A luz da Lua também entrou e foi deitar-se no canto da “casa”. No chão. Na cama da menina.



Com medo de ter acordado alguém, a menina vira-se para dentro e percebe que a luz da Lua, além de acomodar-se em sua cama, havia iluminado um objeto. Pensando ser uma alucinação, porque naquela noite não havia comido, a menina chegou perto, ajoelhou-se e chorou.

No dia seguinte, o “Cabe mais Um” reuniu seus moradores na área de serviço, local que abrigava velhos e quebrados tanques de lavar roupa, em que se juntavam pedaços de sabão para lavar o pouco que se tinha, para tentar esclarecer um mistério: o objeto que a menina vira em sua cama era uma boneca. A mesma que sua mãe havia se esquecido de pagar e pela qual foi levada ao “lugar mágico”. Ninguém entendeu como o brinquedo, caro demais para ser comprado por um ou por um grupo de moradores, havia parado ali. Ter sido jogada era impossível, pois a boneca encontrava-se cuidadosamente colocada e, além disso, quatro andares separavam a rua da “cama” da menina.

A menina, ou melhor, a Luz, nem ligou para o burburinho que se montou. Enquanto todos imaginavam como a boneca tinha chegado lá, Luz era só alegria. Sim, o sorriso voltara ao rosto da menina.

A partir daquele dia, a energia e a alegria da Luz voltaram a iluminar o “Cabe mais Um”. Os corações feitos pedra foram sendo lapidados. Todos diziam que a boneca foi como um fósforo que deu vida à chama de um candeeiro. Ninguém mais se importou em como a boneca havia chegado até a “casa” da Luz. Quem não acreditava em nada, passou a entender que maior que a força física é a do pensamento, do desejo.

Foi um desejo, nascido depois que a Luz voltou a iluminar a todos, que transformou o “Cabe mais Um” em um lar. A venda do Fernandes virou um mercado de bairro. A padaria “alternativa” do Seu Mohamed deu lugar à padaria de toda a região. Os do Céu de Salvador começaram a visitar o local.

Esse local é onde estou agora. Na verdade, estou no espaço em que funcionou o mercado do Fernandes. Agora é uma sala: cadeiras, ar-condicionado e um guia. É ele que vai levar meus companheiros de viagem e eu ao quarto andar. Vamos percorrer todo o corredor até chegar a uma porta. Depois dela, conheceremos o lugar em que um milagre aconteceu. Um lugar em que a luz voltou a brilhar e dar vida a quem não tinha. Um lugar que antes não era nada, ou melhor, era um amontoado de almas. Um lugar em que aconteceu uma festa. A melhor festa. A festa de almas.
 
FELIZ NATAL!!!

Um comentário:

Maria Lúcia disse...

Olá Matheus... Texto bem elaborado... Deve ter lhe dado um prazer enorme depois de pronto...O milagre da luz da lua é divino!!!!
A menina simples, pobre, mas com uma espiritualidade imensa....Linda matéria... diferente de outras desta época...
É o milagre do filho de DEUS, nosso aniversariante Sr. Jesus se manifestando na simplicidade...PARABÉNS!!!!!!! bjus